TODA LÍNGUA É POESIA. UMA CONVERSA COM ERIN MOURE
por gleuza salomon
Erin Moure mora em Montreal (Quebec), no Canadá. Lá mesmo ela iniciou sua obra poética, em 1976. O seu primeiro livro foi lançado em 1979. É poeta em inglês, traduziu do francês Nicole Brossard e alguns trechos de Christophe Tarkos, além do galego Chus Pato. Verteu para o inglês Fernando Pessoa. Um fato inédito: o que seria o intraduzível portunhol (português e espanhol), além do guarani que são marcas de Mar Paraguayo, novela do escritor brasileiro Wilson Bueno, publicada em vários países, é reinventada pela poeta canadense Erin Moure, em francenglish (francês e inglês). Escolhe, por exemplo, algumas palavras do mohwak e as insere substituindo as palavras do guarani, como kania:tare - large body of water (muita água); kaniatara'ko:wa'- ocean (oceano); khe'kenhren'stha- I humiliate someone (eu humilho alguém).
O interesse de Moure por Mar Paraguayo advém de sua própria experiência em ter como língua materna o frores, dialeto medieval de híbridos do galego e do português, além do fato de vivenciar duas línguas: o inglês de sua infância e, na atualidade, o francês não mesclado pela língua autóctone — oportunidade em que se discute o pulsante ressurgir do racismo. Recentemente no Canadá francofalante se esboçou esta problemática concernente ao colonialismo francês no Quebec. Vemos que isso não se dirige apenas à língua francesa e aos franceses. Nesta cidade francofalante coexiste a exclusão do mohawk, uma língua indígena autóctone da região de Montreal.
Vê-se mais claramente neste trabalho de tradução os três extratos de línguas na composição da escritura de Mar Paraguayo: um bordado que o autor tece entre o portunhol e o guarani, compondo uma literatura de tecido lingüístico infinito. Identifica-se nessa tessitura uma funcionalidade que se aproxima do guarani jopara. Seriam as bricolagens de novas palavras, o que cotidianamente, tanto brasiguaios como paraguaios, inventam nos seus falares fronteiriços do portuñol e do jopara? Leiam a seguir, a entrevista:
Zunái: Você é canadense. Como foi a descoberta da origem galega do seu sobrenome, Moure?
Erin Moure: Foi surpreendente. Meu pai sempre disse que nosso sobrenome é espanhol, mas os espanhóis a quem perguntei me disseram que não. Quando encontramos, meu pai e eu, os papéis pertencentes ao meu avô paterno, guardados durante anos, na casa familiar em Otawa, foi uma revelação. Naquele momento, soubemos de onde veio meu bisavô paterno, Bieito Moure Lobariñas, que emigrou em 1848 para Paris e depois foi para Londres: da Galícia! Já na primeira vez que fui para lá, fiquei encantada. Logo aprendi o idioma e descobri que posso ler igualmente em português. Traduzi Pessoa, Chus Pato e agora alguma coisa do Crebreiro e de Daniel Salgado, para ajudá-los a participar de festivais na Europa. Não só os anglo-falantes (anglo-saxões) os lêem em inglês, mas também os eslovenos e outros.
Zunái: Ao se descobrir bisneta de galego, o que mudou em você? Esta pergunta decorre da sua própria resposta para a A nosa terra (histórica publicação da Galícia, hoje semanário e também na internet), ao dizer que "En galego, o meu xeito de pensar cambia".
EM: Pois muda, mudou. Falar outro idioma elaborado e histórico, a embasar uma literatura tão formosa, é um privilégio enorme para mim. Agora vejo melhor como os galegos percebem o mundo, como recebem o seu lugar nesse mundo. Ao saber isso, acolho o meu próprio lugar, Montreal e Canadá, de jeito diferente.
Zunái: Traduzir Fernando Pessoa para o inglês aproximou-a mais – na condição de leitora – da língua portuguesa. Isto também trouxe alguma mudança em você? Há quem diga que o galego é uma língua em extinção, assim como escrever em português seria o mesmo que "não ser lido". O seu desejo de escrever em galego e criar poemas em inglês, a partir das cantigas medievais em galaico-português, se manifesta no seu livro, recém-lançado, O cadoiro. Frise-se que, com esse trabalho, você faz a sua parte para que essas línguas continuem existindo, ao poderem ser lidas também pelos anglo-saxões. Pergunto-lhe se você inclui nexo político em seu fazer poético?
EM: Sim, há algo político neste fazer. Aprender a falar uma língua de pouca repercussão — e não em extinção! — significa dizer que há coisas para pensar e para viver fora do império americano. É importante que um idioma, seja qual for, para sobreviver, tenha que formar novos falantes. Como eu!
Zunái: Mudando um pouquinho de assunto, pude ver no Google que você faz performances, poderia falar sobre isto?
EM: Pois recito de maneira performática. Sempre recitei sem palco, com o corpo visível, sem me esconder. A voz é também importante para mim. E olho para o público. A leitura de poemas e a performance são dois aspectos relacionados, coligados.
Zunái: Como você atrai o público para a poesia? É necessário criá-lo, formá-lo, provocá-lo? Nesse sentido, qual é para você o papel dos meios de comunicação? E nesses múltiplos suportes à palavra, à poesia, à literatura enfim, que futuro você vê para o livro?
EM: Respeito muito o público, provocamo-nos juntos. E penso que os novos suportes para publicação – Internet e outros – são bem interessantes. Temos que multiplicar esses suportes e as maneiras de compartilhar a poesia. E o livro? – o livro é uma coisa muito flexível, muito formosa, não vai desaparecer. Penso que ainda temos muito o que aprender.
Zunái: Fale-nos do seu encontro com as línguas transfronteiriças e da sua experiência com o portunhol e o guarani, sobretudo inscritos em Mar Paraguayo, de Wilson Bueno. E, de você, Erin, que teve como língua materna o frores, além do silêncio que te cercava em sua cidade natal, Calgary, onde só se fala o inglês.
EM: Para mim Mar Paraguayo é um livro transfronteiro por excelência. É visível que eu ame muito este farfalhar entre os sons e as palavras na sua prosa poética, sua poesia em prosa. Para mim é muito importante que as fronteiras mexam-se, que não sejam tão fixas como imaginávamos. É necessário tornar visível a sua porosidade. Para mim, a ética reside nisso, no encontro que ocorre entre as línguas e as pessoas.
Zunái: Como foi que você percebeu que a língua inventada por Wilson Bueno em Mar Paraguayo, o portunhol, poderia vir a ser traduzida para o francenglish e o guarani para o mohwak, a língua indígena canadense?
EM: Eu moro num lugar onde o inglês está atravessado pelo francês. Trata-se de um inglês deformado e reformado, ondulante e leve que existe num contorno francofalante. Não é, no entanto, mestiçado com o mohawk, mas eu acrescentei algumas palavras desta língua para traduzir o portunhol-guarani de Bueno, porque os mohawks são os indígenas daqui, deste lugar, onde está a cidade de Montreal. A história da colonização européia é muito diferente no norte, no Canadá, como também do Brasil. Por exemplo aqui tivemos dois colonizadores, os franceses e os ingleses, e a tensão histórica entre os dois grupos (para explorar os indígenas, é claro) teve suas conseqüências. Eu não sou nem de um grupo, nem do outro. Eu convivo com o francês e também falo inglês porque cresci nas terras anglófonas, que se situam mais ao Oeste.
Zunái: Do francenglish, em sua nota de página dos fragmentos já traduzidos de Mar Paraguayo, você informa textualmente que “o francês que se fala na cidade de Montreal está cercado e infiltrado pelo inglês falado na América do Norte. O portunhol de Bueno, sua mescla transfronteiriça de português com espanhol, neste texto é traduzido para o francês e inglês de modo casual, assim como ele chega a mim eu o falo.” Por quê?
EM: Talvez seja porque eu habite entre estas duas línguas, o inglês e o francês, e ainda uma terceira, o galego, e mais as palavras que me atravessam em vários idiomas. Eu acolho o portunhol a partir de minhas experiências com essas línguas, experiências impossíveis de serem encontradas na América do Norte. Então, no portunhol de Wilson Bueno, eu encontro um irmão ao Sul.
Zunái: Explique-nos a transfronteiridade lingüística, e o porquê de não ter encontrado todas as palavras mohawk para traduzir o guarani.
EM: Eu traduzi as palavras de Bueno em guarani pelas de mohawk, sim. Sem conhecer o mohawk, e utilizando um dicionário. Só queria estabelecer a tradução conservando os três idiomas para mostrar ao público inglês, a variedade e a vitalidade do texto de Bueno.
Zunái: Ainda dentro da mesma questão, o português do Brasil incorporou várias palavras do guarani. No francês de Quebec, isso aconteceu com o mohawk?
EM: O mohawk não ocupa a mesma posição que a língua colonizadora (o francês, ou mesmo o inglês), assim como o guarani ocupa um lugar na língua brasileira. Parece-me que o brasileiro inscreveu na língua portuguesa (colonizadora) muitas palavras do guarani, como o espanhol do Chile por exemplo com as palavras aymara. Mas não fiz pesquisas e as minhas conclusões não têm nada de científicas! No entanto, temos em Quebec e no oeste do Canadá muitos nomes advindos dos idiomas indígenas. E existe no oeste do Canadá um idioma mesclado, um composto de palavras do inglês com vários idiomas autóctones, o Chinook. Ainda utilizamos palavras desta língua em inglês no oeste. Algo muito bonito, por exemplo, é o skookum. Mas, no caso da tradução de Bueno, queria utilizar a mescla de idiomas de meu lugar, a cidade de Montreal. A cidade onde moro, onde traduzo.
Zunái: Existe um “silêncio” da língua mohawk em sua cidade, sendo que os mohawks são os indígenas originários daquele lugar. Como você acaba de nos dizer é “um silêncio que grita”. O mohawk ainda existe, falado e escrito, nas reservas indígenas da região. Vejo que você se encontra dobrada pelos dois silêncios, que eles ressoam entre si, tanto o frores como o mohawk. Então, como você analisa este fenômeno? Por que o mohawk não foi constitutivo do francês falado no Quebec?
EM: O francenglish que utilizei é algo particular, inventado por mim para responder ao texto de Bueno. Vivo num país francófono, e os mohawks, como todos os outros indígenas, foram cooptados pelos colonizadores e forças inglesas há 400 anos. Tem que lembrar que tivemos aqui dois colonizadores antagônicos. Havia os indígenas que ficaram do lado francófono, como também os hurons, e outros mais. A situação é muito diferente. Isso tudo é muito complicado e eu não tenho nenhum aprendizado técnico neste sentido. Minhas opiniões contam como as de qualquer um.
Zunái: Segundo José Kozer, o célebre poeta cubano exilado nos EUA, as três línguas de Mar Paraguayo resultam, para ele, numa quarta língua - o portunhol. O que aconteceu para que o francês falado deixasse de fora o mohwac? Insisto nesta questão. Crê você que haja um racismo mais ostensivo no Canadá? Psicanaliticamente falando, poderíamos pensar que não ocorreu o nó lacaniano na forma de “sinthoma” que possibilitaria a criação de uma quarta língua como o portunhol?
EM: Não tenho muita experiência nisso e não poderia situar minhas observações neste contexto. Creio que o francenglish que traduzi de Bueno é uma invenção minha, nada mais. É certo que houve racismo em nossa História, e que isto ainda nos machuca. Também está claro de que tanto aqui, como nos EUA, os indígenas têm menos oportunidades, e que nossas prisões têm uma população de indígenas em número bem mais expressivo do que a população em geral. Temos que fazer muitas mudanças, é evidente. Não se trata, creio eu, de um racismo ativo, mas sim histórico e estrutural, que tentamos retificar. O nosso modo de retificação (nós, como sociedade) não está sempre à altura deste trabalho, creio eu. Esta é uma outra situação, não sou especialista nisso, sou tradutora.
Zunái: Você faz uma distinção entre idioma e língua. Qual é a diferença em seu raciocínio?
EM: A língua é mais vasta, refere-se a todo idioma em geral, os idiomas para mim situam-se nos lugares. Talvez a língua resida nas pessoas (e nas flores, nas árvores, nos animais...)
Zunái: Como tradutora de Mar Paraguayo você também disse de forma textual : “Por não ter encontrado todas as palavras, eu as inventei: " takwa'ahson: spider (aranha) takwa'ahson tehota'a: ronte: spider web (teia de aranha) nitakwa'ahsona:' a: little spider (uma: pequena aranha).” Você confessou aí claramente que inventou estas palavras. Como você vê a invenção de palavras? Você mesma, como poeta, e Wilson Bueno como o inventor do portunhol na errância fonética da escrita ficcional de Mar Paraguayo, “inventam” uma nova literatura?
EM: Encontrei as palavras no dicionário, de um modo bastante simples. Mas, eu não tenho a menor idéia de como são utilizadas ou construídas as frases. Em cada tradução existe um pouco de invenção. Caso contrário, a tradução se torna impossível. Traduzimos através de nosso próprio corpo que faz parte de uma cultura, que era e sempre será social, sempre antecipadamente.
Zunái: Todos os estudiosos de James Joyce sabem que depois dele a literatura não existe mais. Na sua opinião, existe aí uma “destruição”?
EM: Não vejo assim, como a “destruição” da literatura mas sim como a “destruição” de uma idéia fixa da literatura. A literatura é algo que “se fixa”. São necessários os escritores para fazê-la se mexer, rebolar, avançar.
Zunái: Sabemos que o Paraguai possui duas línguas oficiais: o guarani e o espanhol. Contudo, existe um modo de falar que é um costume dos índios guaranis que foi transmitido para os paraguaios. Chama-se apocopar. Cortam-se as palavras e depois as reúnem, sempre em uma nova forma. Surgem sempre novas palavras durante a conversação. Parece que aí uma nova língua se desenvolve no ato mesmo da fala. Um jogo lingüístico e social que compõe a comunicação.
EM: Que coisa interessante! Talvez, o mohawk seja semelhante nesse aspecto.
Zunái: Podemos acreditar que se tratam de poemas, estas línguas vocalizadas. Seriam elas mesmas formas poéticas?
EM: Toda língua é poesia. Diria que isto ocorre principalmente nas regiões de fronteira onde os idiomas se modificam e a língua se torna mais interessante, em movimento constante. Não?
Zunái: O que você pensa do interesse crescente, em certos meios literários, dirigido a romances como Mar Paraguayo? Uma obra, por exemplo, que mereceu inúmeras reflexões, num arco, como no caso, que vai de Cuba à New York, de Paris ao México e à Argentina?
EM: Aprovo vivamente! Penso que trabalhos desta natureza merecem o interesse de qualquer meio literário.
Zunái: Uma questão para a poeta do inglês, do galego e inventora do francenglish: O que você pensa da nova poesia anglo-saxônica produzida nos países de língua inglesa?
EM: Anglo-saxão para mim quer dizer um período histórico no Reino Unido! Você está falando da nova poesia em língua inglesa? Ou que é produto não só de pessoas de ascendência inglesa? Não posso falar da Inglaterra, nem dos Estados Unidos, nem da Austrália ou dos países africanos que falam inglês. No Canadá, posso dizer que existem poetas muito interessantes que romperam com as normas, que fugiram dos quadradinhos. É isto que me interessa na poesia. Esta nova poesia tem nomes, como Lisa Robertson, Christian Bok, Sina Queyras, Daphne Marlatt, Hiromi Goto, George Bowering, Ray Hsu, Ian Samuels, Lola Lemire Tostevin, Roberto Kroetsch, Nicole Markotic e outros e outras...
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A tradução das respostas de Erin Moure foi realizada por Gleuza Salomon e por Ewaldo Schleder.
2 comentarios:
interesantísimo.
un puntito nada más:
"língua inventada por Wilson Bueno em Mar Paraguayo, o portunhol,".
en 1981 ya conocía el término portuñol, dicho por gente brasileña, nada menos que en Brasilia.
más o menos así: "io no falo español, so portuñol, e tambem no muy biem". ( no recuerdo bien ).
creo que el término "portuñol" al menos existe de mucho antes y designa eso que sabemos; ahora bien, como lengua literaria.. no sé, es tan fluctuante que no creo se pueda decir que fue *inventado* por nadie. eso implica que WB creó un canon, un thesaurus completo y autosuficiente.
y aclaro que no leí Mar Paraguayo.
Sí, sí, la revista Zunai (que hace la entrevista) se equivoca cuando le atribuye la invención del portuñol al vizinho Wilson Bueno. El portuñol, salvaje o no tanto, si existe, está aún por inventarse. También se equivoca Zunai cuando se refiera al "galego" Chus Pto. Chus Pato é galega!
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